Relato: EM ALGUM LUGAR DO PASSADO - AKR, uma história real


EM ALGUM LUGAR DO PASSADO...

Por Kira Cavalcanti 

Quem assistiu a esse filme, cujo título encabeça este artigo deve lembrar o incrível recado que ele passa. A angústia do não entendimento de certos acontecimentos na vida que nos leva à busca por respostas. Em meio ao turbilhão de pensamentos, mesmo perdidos e sem compreendermos direito o porquê dos fatos, precisamos entender que tudo é um aprendizado e é necessário amadurecer.

Mas fatos reais estão aí a todo o momento, deixando o seu recado. Uma dessas histórias reais e intensas teve seu início há dois anos, um rapaz de 37 anos, muito bonito, entra em minha sala para a entrevista inicial ou anamnese. Enquanto fazia as perguntas pertinentes aos dados que levariam ao diagnóstico em Medicina Chinesa, ele me surpreendia com uma frase a qual repetia várias vezes: “Que sorte ter encontrado vocês”!

Até que me disse realmente qual o motivo que o tinha levado até lá. Ele havia descoberto há oito meses que estava com leucemia. Estava em tratamento com um médico oncologista, tomando a medicação indicada e fazendo os exames periódicos, mas apresentava sempre um quadro de febres constantes que por vezes chegavam a 38 graus, cansaço e pele amarelada. Sua família não sabia, nem no seu trabalho e me pediu segredo.

Ele, piloto de helicóptero, formado em Psicologia e Filosofia, inglês fluente, mestre em Yoga e fazia há um ano, o curso de Medicina Tradicional Chinesa em Porto Alegre.

AKR modificou hábitos do seu dia a dia, incluindo os alimentares. Além das práticas de Yoga e meditação, começou a praticar Tai Chi Chuan e aliados às sessões de Acupuntura e demais terapias, percebemos ao longo do tratamento que graças a sua fé e aos conhecimentos obtidos no curso de aperfeiçoamento em MTC que tive a oportunidade de cursar na Universidade de Nanjing – China, AKR começava a melhorar a olhos vistos. Sua tez foi retornando a cor normal, os quadros de febre diminuíram consideravelmente, sua imunidade elevou-se e estava disposto como há alguns meses não se sentia.

Trabalhava, viajava, namorava, freqüentava cachoeiras e trilhas, andava em sua moto, voltou a uma vida normal, mas com seus devidos cuidados nunca negligenciados.

Com o tempo ficamos amigos, sei que era algo que ele tentou de todas as formas evitar, pois certamente não queria me ver sofrer. Mas não havia como evitar, pois a confiança aumentava a cada dia. No primeiro mês de tratamento, duas vezes por semana para tentarmos equilibrar seu organismo e após, uma vez por semana, o qual seu organismo foi respondendo positivamente e AKR sentia-se cada vez mais forte e confiante.

Fomos com o tempo “trocando figurinhas” sobre a Medicina Chinesa e nosso papel nesse mundo, conversávamos muito e sabíamos que havíamos encontrado alguém da “tribo". Em meio a conversas informais, ele achava uma brecha para me agradecer os cuidados dispensados a ele e eu respondia com “reconheço meu papel nisso tudo e sei que o mestre aqui é você”.

AKR, nunca reconheceu em sua formação diferenciada algo extraordinário, do alto de sua humildade e simplicidade, sabia o quanto ainda tinha para desvendar os segredos da vida e tentava de todas as maneiras compreender o porquê da existência.

Passaram-se um ano e oito meses, AKR não dispensava as sessões de Acupuntura e a prática de Tai Chi Chuan. Por várias vezes, o que chamamos comumente de “coincidências” ocorreram entre nós. Até que um dia disse a ele que estava pensando em voltar para Brasília e pedi que não deixasse a Acupuntura, procurasse outro profissional para continuar com o tratamento...e ele ouviu calado.

No dia 10 de dezembro de 2010, retornei a Brasília após 3 anos no sul. Continuávamos nos falando por email, torpedos e nas sextas feiras às 16:00hs, que era o seu horário habitual de atendimento, eu me recolhia e imaginava atendendo-o à distância. Crer é a maior força que temos para continuar. Coincidência ou não, sem que nos comunicássemos, AKR neste momento independente de sua tarefa, segundo me contou, lembrava subitamente do tratamento à distância, quando verificava a hora eram exatamente quatro horas da tarde. Uma dessas vezes, ele estava em uma banca de revista olhando para uma Revista Planeta, título da capa: A força do pensamento.

No dia 24 de dezembro de 2010, recebi um torpedo dele às 23:30h, dizendo que havia finalmente terminado seu TCC em MTC (Trabalho de Conclusão de Curso em Medicina Tradicional Chinesa) e estava me enviando por email, como presente de Natal. Verifiquei meu email e lá estava “A Medicina Tradicional Chinesa e o Câncer”, um trabalho que lhe custou muito sacrifício, pois ele era sua própria fonte de informação. Importou dois livros da Inglaterra sobre o assunto, utilizou alguns livros que eu havia trazido da China e pesquisou incansavelmente sobre estudos e resultados da cura do câncer através da Medicina Chinesa.

Seu trabalho ficou realmente extraordinário. Tirei uma cópia e comecei a lê-lo. Desde o momento que tomei o trabalho em minhas mãos, uma enorme emoção tomou conta de mim e sem controle, as lágrimas rolaram, lágrimas de emoção, reconhecimento, orgulho em saber, ver, sentir e acompanhar o enorme esforço que meu amigo fez, para que este trabalho fosse finalizado.

Sei que seu trabalho tinha um objetivo bem maior do que a finalização de seu curso. Seu desejo era que seu estudo auxiliasse profissionais da área a aliviar os sintomas pelos quais passam as pessoas que assim como ele, enfrentam os tratamentos de câncer e suas incógnitas constantes que os acompanham. Eu lia encantada e emocionada o trabalho de AKR, por vezes tive que parar a leitura, pois a emoção superava a razão.

No início de 2011, recebi em minha atual residência uma correspondência datada do dia 31 de dezembro, era de AKR, um DVD de Akira Kurossawa – Sonhos, por incrível que pareça, as mesmas iniciais de seu nome. Dentro havia escrito: “Espero que tenha bons sonhos. Saudades. Adriano” E eu vi maravilhada a arte incomparável deste inesquecível cineasta japonês. Sonhos trata - em sua maior parte - da natureza e sua relação com o egoísmo humano, da destruição imposta a si mesmo e ao planeta. Questões que afetavam enormemente meu amigo.

No dia 14 de janeiro deste, recebi um torpedo de AKR perguntando qual o melhor horário para me ligar, pois precisava falar comigo. Estranhei...senti na sua voz uma ausência de energia, quase um desfalecimento, uma profunda tristeza disfarçada por risadinhas e percebi angustiada que algo muito grave estava acontecendo.

Ele me disse que a medicação não estava fazendo mais efeito, após três anos de uso. Sei que ele acreditava que a medicação seria eficaz por cinco anos, e que ainda teria pelo menos, mais dois anos e após contaria a família e procuraria finalmente o transplante de medula óssea.

Pedi a ele, que contasse imediatamente à família, chamasse seus pais e deixasse que eles o ajudassem, ele acabava de fazê-lo. Seus pais e irmãs, em meio à triste notícia, souberam, então, de minha existência. Pois, segundo ele, somente seu médico e eu sabíamos de seu estado.

Uma enorme angústia, tristeza e impotência tomaram conta de mim e eu desabei... surgiram perguntas como: “Por que tive que me afastar logo agora”, sentia-me culpada, mas ao mesmo tempo sabia que toda essa situação estava muito além da minha vontade. Mas nada me consolava e eu não conseguia mais me alimentar ou dormir, chorei muito, pois sentia o sofrimento do meu amigo.

Seus pais o levaram para Porto Alegre, segundo ele me disse, estava indo apenas para tratar sua anemia, como “precaução” mas eu sabia que ele estava tentando me poupar.

Não conseguia mais falar com ele. Sua mãe respondia meus recados dizendo que ele estava bem e logo poderia falar comigo. Eu sabia que algo muito grave estava acontecendo. Mas estava longe, fora de alcance, não tinha nenhuma relação com sua família e ele... não estava podendo falar. Minha angustia era enorme.

Sua mãe então me ligou dizendo que ele havia pedido para informar que estava bem e logo entraria em contato. Mas isso não aconteceu, ela docemente me dava notícias, que pareciam mais esperanças que realidade. E eu sem poder saber. Até que um dia ela me pediu que fosse a Porto Alegre e me avisou que ele não poderia me ouvir nem me ver, pois estava sedado e eu num impulso disse a ela que eu acreditava que mesmo nestas condições ele via e ouvia.

Então viajei a Porto Alegre. Fui recebida por uma amiga que me acolheu e me acompanhou nestes três dias que passei no hospital junto a AKR. Conheci então seus pais e irmãs, o que dizer num momento desses? Palavras ficam sem força e nada traduz o que realmente se sente. Entrei e vi meu amigo sedado e cheio de tubos, pálido, mesmo assim sua beleza transcendia a situação. Visitas na UTI pela manhã, tarde e a noite. Minha visita se resumia em chegar perto dele, pegar sua mão e rezar. Falava mentalmente com ele, tentava iluminá-lo com imagens de seres celestiais que postavam-se a sua volta trazendo-lhe energia e paz. Era o que eu podia fazer...

Não sei explicar porque uma música não saia da minha mente, por várias vezes ao dia e até despertando do meu inquieto sono nas madrugadas. Era “Mais uma vez” de Renato Russo. Esta música surgiu de repente, não havia identificação alguma em nossa amizade, mas eu sabia que ela tinha um propósito. Naquele momento eu não compreendia, mas ela estava sempre presente e eu involuntariamente, a cantava mentalmente a todo instante. Marcou aqueles dias em Porto Alegre.

No terceiro e último dia que estaria por lá, entrei na UTI e vi meu amigo tendo pequenas convulsões. Sempre olhava seus batimentos cardíacos, estavam em 93bpm. Chamei baixinho a enfermeira e perguntei angustiada à ela porque ele estava assim e ela respondeu que ele estava tentando sair da sedação e que seus movimentos eram espasmos musculares. Eles de repente aumentaram, sacudindo Adriano na maca e suas batidas subiram para 143bpm, fiquei desesperada, chamei a enfermeira e ela disse que ele havia reagido a algum estímulo.

Cheguei perto de Adriano e comecei a falar com ele, tentando acalmá-lo, então ele mordeu o tubo, virou o rosto para o meu lado, abriu os olhos e me olhou, lágrimas rolaram em seu rosto. Seus lindos e expressivos olhos, agora com olhar distante, sofrido e desesperador. Nunca em minha vida me senti tão impotente. Eu não podia atender ao seu apelo, meu amigo sofrendo e eu já não podia mais ajudá-lo...

Voltei naquela tarde para Brasília mais triste do que havia partido, pois vi a real situação. Liguei para o meu pai e pedi que ele como espiritualista me dissesse algo para acalmar meu coração. Foi então que meu pai me disse: “Filha, Eles tiveram que afastar você dele, para que ele pudesse seguir o seu caminho. Por quase dois anos você o ajudou a ter condições melhores de vida. Entenda, não depende mais de você. Sua missão acabou.”

Difícil entender que a você só resta compreender e ler as lições que lhe foram deixadas. Que você não tem o direito de interpelar com porquês ou se revoltar ou não se conformar...não cabe à você.

Fui fazer um curso de final de semana e no domingo dia 13 de fevereiro às 11:30hs da manhã, o colega que estava ao meu lado começou a cantar de repente aquela música de Renato Russo...”Mais uma vez”... e eu sem palavras, surpresa e tentando entender a “coincidência” senti fortemente a lembrança de Adriano...e calei. Fui para casa e procurando sentido no silêncio, esperei, deitei e dormi. Acordei com um toque do celular, eram 14:20h, era um recado da irmã de Adriano, estava escrito “O mano virou anjo”...li e chorei... Meu amigo havia ido embora e finalmente compreendi o objetivo daquela música, tenho certeza, ele havia vindo se despedir de mim.

Um enorme vazio tomou conta dos meus dias, mas é preciso continuar, entender os ensinamentos, amadurecer, crescer espiritualmente e fazer jus aos momentos que pude aprender com Adriano. Ele realmente foi meu mestre.

O trabalho dele não foi defendido, não houve tempo hábil.
Sua família, conseguiu, após meses,  junto à Biblioteca Nacional, registrar o seu trabalho de conclusão de curso, onde a partir de então, encontra-se devidamente reconhecida a sua autoria.
É grande minha alegria em saber que junto ao meu Trabalho "Os Tesouros do Imperador", está o de Adriano "A Medicina Tradicional Chinesa e o Câncer", ambos registrados na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
À mim cabe, reconhecer toda esta caminhada para que eu possa através do trabalho de Adriano e as experiências como paciente que ele me deixou, auxiliar pessoas que estejam passando pelas mesmas necessidades de atendimento, das quais Adriano passou.
Esta é uma missão que tenho em minhas mãos, um legado. Com orgulho utilizarei seu estudo, para que seus dias de luta, estudo e formação deste sirvam para aliviar a dor de quem passa por esta estrada.

Em respeito e admiração ao ser humano e ao seu trabalho "A Medicina Tradicional Chinesa e o Câncer", fica aqui registrada a obra de Adriano Kunze Rigon.